Vladimir Platonow
Repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro - O reconhecimento da Ilha da Marambaia como comunidade quilombola esbarra em um emaranhado de versões históricas, leis, decretos e instâncias jurídicas. De um lado, a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, lideranças comunitárias, organizações não-governamentais, um juiz federal e um procurador federal. Do outro está a Marinha e a Procuradoria Regional da União. No meio ainda há o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Advocacia Geral da União (AGU) e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo documentos aceitos pela Marinha, para se entender a disputa jurídica é preciso voltar ao ano de 1856, quando a ilha foi registrada em nome do Comendador Breves, que, ao falecer em 1889, deixou o terreno para a esposa. Pouco tempo depois, ela teria vendido a área para a Companhia Promotora de Indústrias e Melhoramentos, que faliu em 1896 e teve a propriedade da Marambaia transferida para o Banco do Brasil.
De posse do imóvel, a União disponibilizou o uso para a Marinha, que ali instalou a Escola de Aprendizes-Marinheiros, em 1908. Em 1943, uma parte da ilha foi cedida para a instalação da Escola de Pesca Darcy Vargas e, em 1971, foi novamente reintegrada ao patrimônio da União e à Marinha, que em 1981 criou o Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (Cadim), para treinamento dos Fuzileiros Navais.
Já de acordo com as lideranças quilombolas a história é diferente. Segundo artigo da revista Existimos, publicada pela Associação dos Remanescentes de Quilombos da Ilha da Marambaia (Arquimar), com apoio de organizações não-governamentais, o Comendador Breves, ao fim da escravidão, em 1888, distribuiu as praias entre as famílias dos negros que trabalhavam em sua fazenda, embora desse gesto não haja qualquer documento.
Para a líder comunitária Vânia Guerra, a não existência de documentos em nada invalida a posse da terra pelos descendentes de escravos. “Isso é uma coisa que a gente não tem dúvida. Todos sabem que a história do negro não consta em documentos, ela é passada oralmente. Quem mora na região sabe que a Marambaia era um reduto negro, para onde eles eram traficados e passavam por um período de engorda, a fim de ficarem saudáveis e depois serem vendidos”, disse.
Recentemente, a questão foi judicializada e os quilombolas tiveram duas vitórias importantes: o reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares, em 2004, e uma sentença favorável expedida pelo juiz federal Raffaele Felice Pirro, de Angra dos Reis (RJ), em março de 2007.
Porém, em agosto de 2007, uma decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) do Rio de Janeiro suspendeu parcialmente os efeitos da sentença.
Um ano antes disso, em agosto de 2006, o Incra chegou a publicar no Diário Oficial da União o reconhecimento e a delimitação do quilombo da Marambaia, mas voltou atrás no dia seguinte, emitindo uma nova portaria tornando a anterior sem efeito.
Atualmente, o assunto está sendo analisado pela AGU, através de um grupo de trabalho.
Para o Procurador Regional da República Daniel Sarmento, a questão não chega a uma solução por interferência da Marinha. “Está havendo uma séria violação dos direitos fundamentais dos quilombolas em função da pressão política da Marinha”. Segundo ele, o que está valendo hoje é uma liminar que assegura aos quilombolas o direito de continuarem na ilha.
A situação já chegou inclusive ao STF, através da argüição de inconstitucionalidade do Decreto 4.887, de 2003, que define o conceito de quilombo, a fim de poder ser aplicado o que prevê a Constituição federal: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) foi interposta pelo extinto PFL, atual DEM, em junho de 2004, atacando a ilegitimidade do poder Executivo em editar o decreto, que teria de passar pelo Legislativo, e também a validade do conceito de auto-determinação dos quilombolas. A relatoria é do ministro Cezar Peluso e ainda não há data para julgamento.
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